terça-feira, 19 de abril de 2011

Antropofagia



Somos seres antropofágicos. Podemos conhecer uma cultura de várias formas: viajando pelo país, observando os hábitos de seu povo, visitando seus museus e conhecendo sua história, seus valores, admirando sua arquitetura, ouvindo sua música e assistindo sua dança. Mas há um ato que encerra esse conhecer e o transforma em algo mais. Algo que só se realiza como um processo digestivo. Diz-se que é apenas através da comida que aquela cultura passa a fazer parte de você, irremediavelmente: ela se transforma em energia no seu corpo, que, em troca, passa a carregá-la para sempre.

Neste domingo fomos convidados para experimentar a comida típica da Eritréia. Injera é o prato mais saboreado nesse país africano, que atualmente sofre com os mandos e desmandos de um governo autoritário unipartidário. Um restaurante à meia-luz, decorado com pinturas que retratam o dia-a-dia do povo sofrido. O campo, a lavoura, o medo dos animais selvagens, as relações familiares, o caminhar, o café, o hábito de beber café. 

Injera é um pão. Um pão compartilhado que se corta com as mãos e com o qual se envolve a mistura disposta em um grande prato redondo, também compartilhado. No prato: legumes, raízes, carnes e queijo. Tudo muito bem temperado. O tempero – bem marcado, mas não enjoativo ou forte demais – faz bem para o corpo, para se manter a saúde, nos avisou nosso amigo, aconselhando-nos a acrescentar pimenta em nossas receitas diárias. O prato compartilhado talvez faça bem para a alma – fiquei a pensar: em meio aos nossos modos individualistas é impossível pensar em uma refeição genuinamente coletiva, já que cada um tem seu prato e uma relação de propriedade com sua comida. É preciso generosidade e confiança para se comer no mesmo prato (isso, algumas vezes, é admitido dentro de casais apaixonados e mesmo assim não por muito tempo). Uma mistura com a qual não estamos habituados.

Somos seres antropofágicos. E a comida faz também com que nos apropriemos de nossa própria cultura. Ela reforça em nós certa identidade. Parando para pensar, não me lembro de uma semana, desde que chegamos aqui, que não tenhamos comido nalgum dia arroz e feijão – a típica mistura brasileira. Na última semana ficamos felizes ao encontrar polvilho doce no supermercado e fizemos tapioca. É preciso lembrar quem somos para podermos nos relacionar de forma genuína com o que ainda não somos. E a mistura é lenta. A digestão cultural está mais para um processo ruminatório do que para o sapo “não-eu” que se entala na garganta...
 


PS: A pintura do início da postagem, de título Antropofagia, é de Tarsila do Amaral. Retirada de: http://blog.seniorennet.be/waynart/archief.php?ID=346132

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